quinta-feira, 23 de junho de 2011


Sobre brincar, arte e fantasia na clínica psicanalítica com crianças

                                                                                         
                                                                                    Ana Marta Meira


                No escrito "O poeta e os sonhos diurnos", Freud (1973) analisa a relação entre o brincar e a fantasia, partindo da elaboração sobre os processos de criação do artista. Podemos encontrar neste trabalho passagens que apontam para a construção da fantasia própria do brincar, marcada por traços que se dirigem ao outro. 
              Neste trabalho, Freud (1973) revela que entre o brincar, o fantasiar e a arte há fios que se entrelaçam, fundando espaços de criação. Refere-se ao artista com a expressão schauspieler. Schaus se articula a visão, a ver. Spieler a jogador, aquele que brinca. Podemos considerar o artista -  schauspieler - como sendo aquele que brinca com o olhar. Que convoca, com sua ludicidade, o olhar.
                Entre o brincar, o artista e o sonho, produção de imagens, podemos transitar pelas múltiplas formas que podem outorgar à criança a possibilidade de  reinventar sua história. Entre estas, a psicanálise.
               Ao refletirmos sobre a dimensão lúdica que se instala em uma análise de crianças, observamos que o brincar que se desenrola em transferência apresenta diferenciações diante de outros campos de existência das crianças. Podemos apontar que as brincadeiras que a criança inventa em um processo analítico se encontram articuladas a processos associativos inconscientes enlaçados à transferência.
              Os brinquedos que fazem parte das buscas e encontros das crianças, considerados desde sua posição significante, são objetos que, brincados, falados, jogados, desmontados, remetem às múltiplas significações que podem vir a representar na cadeia associativa que a criança produz.
              Vamos fazer de conta?” é demanda que uma criança produz em análise, onde com personagens e objetos criados em meio ao vazio, mas sustentados transferencialmente, passa a buscar novas formas de ser, a enlaçar sua angústia a histórias encenadas. É nos tropeços, trocas, repetições, posições escolhidas, silêncios, interrupções, que o processo analítico se desdobra.
             O analista que trabalha com crianças ocupa a posição de oferecer a possibilidade de escolha de lugares, espaços e objetos a ser encontrados na cena que a criança busca. Oferece-lhe algumas palavras, muitas delas já enunciadas pela criança, que convocam ao trabalho associativo. Oferece-lhe o silêncio, a ser ocupado com a fantasia e a demanda. Cabe ao analista deixar-se levar pelos trajetos singulares que a criança venha a traçar.
            A riqueza do trabalho analítico a ser produzido por uma criança encontra-se em dependência da possibilidade de experenciar um lugar que se distancia da vida cotidiana, que se opera em meio à fantasia e aos devaneios que convocam à livre associação, motor da análise, pela via do brincar.
            Podemos considerar as brincadeiras e narrativas de uma criança em análise como sendo o motor do  desdobramento subjetivo, ao revelar-se a possibilidade de ensaios de novas posições, novos enlaces.
           Como em uma brincadeira de cabra cega, onde a criança, de olhos vendados, se defronta com seus desejos, medos, angústias, fundando trajetórias que passam a ser sustentadas, visceralmente, por sua imaginação. O desejo do analista aí se apaga, para que seja possível à criança esboçar gestos, olhares e palavras de forma singular, desprendendo-se do desejo do outro, deixando cair os objetos que a prendiam à alienação fundante do ser.
          As crianças costumam girar o corpo daquela que será a cabra cega, para que perca o rumo de seus passos. Da mesma forma, a posição do analista, ao não intervir de forma diretiva, faz com que a criança possa buscar, a partir de seu imaginário, os traços simbólicos que marcarão seu caminho, o norte de seu desejo.
         Podemos nos reportar a Lacan (1963) que escreveu a respeito da relação do sujeito com o objeto perdido, jamais encontrado, onde a sustentação da mesma se opera através da fantasia.  
              Os brinquedos, encontram-se neste lugar:  coisa a perder. São objetos de “faz de conta” que convocam ao brincar.

Margem
Débora Bolsoni
VII Bienal do MERCOSUL, Grito e Escuta
Cais do Porto, Porto Alegre, 2009
imagem: Ana Marta Meira


FREUD, Sigmund. El poeta y los sueños diurnos. Obras completas. Vol. II, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.
LACAN, Jacques. L’objet de la psychanalyse. Séminaire 1965-1966. Paris:   documento de circulação interna da Associação Lacaniana Internacional.